“Nós negros e quilombolas estamos lá e somos a grande maioria da população da Amazônia”
José Carlos Galiza, do quilombo Guajará Mirim/PA, liderança nacional do movimento quilombola e coordenador do projeto Conexão Povos da Floresta, é nosso primeiro entrevistado no Especial Redes da Floresta e destaca os detalhes dos projetos de conectividade da sociedade civil no território amazônico.
Nesta entrevista ao InternetLab, Galiza compartilha sua trajetória de vida e militância, relembra as origens do projeto Conexões Povos da Floresta e discute os desafios e potenciais da conectividade para os quilombos amazônicos. Ele fala sobre como a chegada da internet tem fortalecido as lutas por direitos, ampliado a comunicação com o mundo e viabilizado serviços como telemedicina, formações online, empreendedorismo local e monitoramento territorial.
Diante das críticas ao uso da tecnologia da Starlink, ele explica: “A gente estudou outras alternativas, mas essa era a que levava internet com qualidade para os lugares mais remotos. Criamos camadas de proteção para garantir a segurança da rede e dos dados das comunidades.”
Mais do que acesso à rede, o que está em jogo é o direito à existência e à autodeterminação de comunidades historicamente invisibilizadas. Como afirma Galiza: “Hoje a gente quer ser visto, ser respeitado. A internet ajuda a mostrar quem somos e o que vivemos.”
CONFIRA NA ENTREVISTA:
InternetLab: Você pode começar nos contando um pouco sobre a sua trajetória de vida, o trabalho que realiza nas comunidades quilombolas do Brasil, na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), e o que significam conectividade e acesso à internet para essas comunidades hoje?
Galiza: Meu nome é José Carlos Guerreiro Galiza, mas todo mundo me chama de Galiza. Sou natural do Pará, moro no quilombo Guajará Mirim. Minha militância começou na Igreja Católica, ainda na década de 1970, em um movimento chamado Comunidade Eclesial de Base (CEB). Foi ali que comecei a refletir sobre o modo de vida que a gente levava. A gente começou a entender nossos direitos. Naquela época, minha comunidade havia sido invadida por um fazendeiro e praticamente destruída. Muitas pessoas tiveram que migrar para a Baixada de Belém. Entrei nesse movimento para entender o que estava acontecendo e, com o tempo, fui aprendendo a ser um militante. Um padre italiano que atuava conosco sugeriu que criássemos uma associação para lutar pelos nossos direitos. Assim nasceu a AMBA – Associação dos Moradores do Baixo Acará –, que reunia mais de 40 comunidades. Fui eleito presidente por dois mandatos. Foi por meio desse trabalho que conheci o movimento quilombola. A partir daí, mudamos o foco da luta: passamos a buscar o título coletivo das terras. Na AMBA, a luta era pelo título individual.
Assumi cargos, compromissos e fui mostrando meu trabalho. Fundei a Malungo e também sou um dos cofundadores da CONAQ. A luta foi intensa. No Pará, por exemplo, conseguimos que o estado se tornasse o que mais titulou terras quilombolas no Brasil – cerca de 80% das comunidades tituladas estão aqui. Isso foi fruto da articulação do movimento, que montou estratégias eficazes para avançar na titulação. Hoje, coordeno o projeto Conexão Povos da Floresta pela CONAQ, embora ele envolva também a COIAB(Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e o CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas). Sou o representante da CONAQ dentro do projeto.
A gente costuma dizer que o primeiro quilombo surgiu ainda na África, como forma de resistência para não se deixar ser escravizado. No Brasil, a luta continuou com o movimento abolicionista. Foi uma luta intensa, que deu origem aos quilombos. Acredito que, após a abolição, muitas comunidades optaram pelo anonimato como forma de proteção, por medo do racismo – que infelizmente ainda persiste. Palmares é o quilombo mais conhecido porque há registros sobre ele, mas muitos outros permaneceram invisíveis por muito tempo. Eles só começaram a ser reconhecidos a partir de 1988, com o apoio de organizações do movimento negro urbano, que ajudaram a localizar comunidades que estavam na zona rural e no anonimato.
Hoje, queremos o oposto do anonimato. Queremos visibilidade. Queremos que o Estado nos enxergue, nos respeite e leve políticas públicas às nossas comunidades. E a internet é uma ferramenta poderosa para isso. Com ela, conseguimos mostrar ao mundo quem somos, o que é um quilombo, nossa cultura, nossas festas, nossa culinária, nossas bebidas… Tudo aquilo que ainda é pouco conhecido pela sociedade. A internet também é um canal para denunciar os problemas que enfrentamos, como os crimes ambientais que atingem nossos territórios. Por isso, acredito que ela tem um papel fundamental: nos conecta com o mundo e nos permite pedir ajuda quando necessário. Por tudo isso, sou um grande entusiasta do projeto Conexão Povos da Floresta.
InternetLab: Como surgiu o projeto Conexão Povos da Floresta?
Galiza: A ideia inicial do projeto surgiu de uma iniciativa que monitora o desmatamento na Amazônia e em outras regiões do Brasil. Eles identificaram a grande dificuldade de conectividade enfrentada pelas comunidades amazônicas. Essa percepção ganhou ainda mais força durante a COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), realizada na Escócia, em 2021, quando ficou evidente que as principais demandas das comunidades tradicionais eram a titulação dos territórios e o acesso à internet. A proposta do projeto nasceu ali, ainda antes da chegada dos satélites que hoje oferecem cobertura na região amazônica. Mas foi só em 2022 que fizemos a primeira reunião, em São Paulo, para apresentar ideias e começar a construção do projeto. Nessa fase, a CONAQ foi convidada para participar ao lado da COIAB – que representa os povos indígenas da Amazônia – e do CNS, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas. Participamos da reunião, achamos a proposta muito interessante e, a partir daí, começamos a discutir como construir o projeto juntos.
A recepção foi excelente. Havia outras organizações presentes, não lembro o nome de todas, mas, para nós – que seríamos o público diretamente beneficiado – a ideia fez muito sentido, porque sabíamos da necessidade urgente de conectividade, especialmente para as comunidades mais isoladas.
Iniciamos uma discussão mais ampla dentro da CONAQ, envolvendo os coordenadores. Eles também acharam a proposta muito relevante. Claro que surgiram muitas perguntas: como seria feito? A gente não queria apenas levar internet. Porque levar conexão para quem nunca teve acesso à internet também levanta outras questões. Como essas pessoas vão usar essa ferramenta? A internet tem muita coisa boa, mas também tem seus riscos. Então começamos a debater como preparar as pessoas para fazer um bom uso dessa tecnologia. Esses foram debates importantes. Mas, no geral, a ideia foi muito bem recebida.
Dentro da CONAQ, houve também um debate interno. Como o projeto começaria pela Amazônia – mais precisamente pela Amazônia Legal brasileira – levantamos a questão: e as outras regiões do país? E os outros biomas? Tanto que, inicialmente, o nome pensado era Conexão Povos da Floresta Amazônica. Mas decidimos tirar o “Amazônica” para deixar o projeto aberto a outras regiões. Assim, no futuro, se conseguirmos conectar toda a Amazônia, poderemos levar o projeto para outros territórios, sem precisar mudar o nome. A recepção à proposta foi realmente muito positiva.
InternetLab: Queria te ouvir um pouco mais sobre quais são as maiores dificuldades quando falamos sobre conectar povos quilombolas na região amazônica? O que o projeto traz para as comunidades, além da internet? Que tipo de atendimento?
Galiza: Olha, quando a gente fala em dificuldade, a primeira coisa que vem à cabeça é a logística. Esse é um dos maiores desafios do projeto. Para chegar em muitos quilombos, o acesso é extremamente complicado. Quando é possível ir de carro, as estradas são muito ruins. Na maioria das vezes, precisamos viajar de barco. Eu mesmo passei 15 dias num barco pequeno, cheio de equipamentos, indo de comunidade em comunidade. Isso atrasa tudo, inclusive a entrega dos equipamentos.
Outro ponto que gerou discussão foi o uso da tecnologia da Starlink. Muita gente critica, mas debatemos bastante no início do projeto sobre como garantir segurança nas redes. Depois de testar outras opções, vimos que a Starlink era a melhor alternativa para levar internet de qualidade a regiões remotas. Mas, então, o que a gente fez? Usamos dois roteadores. O que vem com a antena fica com o facilitador ou facilitadora treinado(a) pela gente. Essa pessoa é responsável por resolver problemas locais ou acionar nossa equipe técnica. São equipamentos de baixa manutenção, e a maioria dos problemas conseguimos resolver remotamente.
O segundo roteador é o que chamamos de “Povos da Floresta”. Ele distribui a conexão para até 200 pessoas simultaneamente, sem perda de velocidade. A senha dessa rede muda automaticamente a cada três horas, o que dificulta ataques e protege os dados. Além disso, criamos uma estrutura que impede a Starlink de acessar informações sobre os usuários da rede, garantindo mais privacidade para as comunidades. A Starlink vai saber que ela tem uma antena ativada naquele território, e só. Ela não vai ter acesso aos nossos dados da nossa rede. Então, esse foi um caminho que a gente encontrou para ter um pouco mais de segurança dentro de todas as críticas, de todos os debates que o pessoal está fazendo com relação a isso. Foi um caminho que a gente, tecnicamente, encontrou para dar um pouco mais de segurança para a comunidade.
No início, falávamos em levar internet rápida, rapidamente. A tecnologia de órbita baixa da Starlink permite isso. Para ter uma ideia, no meu município, Acará, a previsão de chegada da internet banda larga tradicional é para 2030. Mas, hoje, todas as comunidades quilombolas do Acará já contam com pelo menos um ponto coletivo de internet banda larga. Com o tempo, percebemos que podíamos ir além. Hoje o projeto conta com mais de 30 organizações parceiras, cada uma com sua especialidade. A gente foi entendendo que a gente tinha condição de oferecer muito mais do que internet via esses pontos de conexão na Amazônia. Decidimos por cinco temas para trabalhar e oferecer formação e informação para a comunidade. Então, a gente tem cinco grupos: Educação, Saúde, Empreendedorismo, Monitoramento Territorial, Cultura e Ancestralidade.
Na Educação, já estamos oferecendo formação online em letramento digital, ou sabedoria digital, como temos chamado. Criamos turmas conforme as comunidades vão sendo conectadas. As aulas acontecem no ponto de internet da comunidade, com dia e hora marcados.
Na Saúde, algumas comunidades já estão testando a telemedicina.A gente idealizou a telemedicina porque a gente viu que comunidades, tanto quilombolas, indígenas, ribeirinhas, extrativistas, são comunidades que, na maioria das vezes, têm um deserto médico. Temos parceiros como o Projeto Saúde e Alegria, de Santarém, que já atuavam nessa área. Aprimoramos a ideia e desenvolvemos um aplicativo que, durante a chamada, capta sinais vitais como batimentos, pressão, temperatura e respiração, apenas com a imagem da pessoa. O médico do outro lado da tela consegue ter uma noção básica da saúde do paciente, que também pode relatar seus sintomas. A receita é enviada pelo aplicativo, e a pessoa pode baixá-la e apresentar na farmácia. A ideia é que se o médico detectou que a pessoa precisa de um especialista, então ela seria encaminhada para a sociedade mais próxima, mas já vai sabendo o dia e a hora da sua consulta. Estamos trabalhando nisso. Então as comunidades vão sendo, nesse campo, incluídas aos poucos. A gente primeiro fez um teste com o aplicativo lá em Santarém, agora a gente está avançando, conectando, colocando em mais comunidades, inserindo para mais comunidades.
No eixo de Empreendedorismo, vimos que as comunidades têm produções valiosas, como açaí, castanha, artesanato. Mas falta mercado, financiamento, orientação técnica. Criamos uma formação online para quem quer empreender. Temos apoio do Centro de Empreendedorismo de Belém e estamos negociando com bancos para criar linhas de fomento. A ideia é oferecer suporte financeiro e técnico aos empreendimentos que surgirem.
Já em Monitoramento Territorial, criamos um aplicativo para denunciar agressões ambientais. Se houver, por exemplo, uma queimada ou desmatamento, a pessoa pode fotografar, gravar vídeos e marcar a localização. A pessoa não precisa nem se identificar se não quiser, só diz de que comunidade é e que município ela está. A informação chega até nós e é verificada por imagem de satélite. Se confirmada, encaminhamos a denúncia aos órgãos competentes, como Ministério do Meio Ambiente, secretarias estaduais ou o Ibama, e acompanhamos até que alguma providência seja tomada.
Para finalizar, a gente tem Cultura e Ancestralidade. Quando a gente fala de cultura, é uma coisa muito ampla, mas a gente poderia pensar em manifestações culturais que muitas vezes existem na comunidade, mas precisa de um apoio, de divulgação, de alguma coisa para ajudar. Pode ser talvez uma cultura que tinha, mas que não tem mais, e queriam resgatar. A gente pode pensar numa culinária, a gente pode pensar numa bebida que tenha na comunidade. Como é que a gente pode transformar isso, quem sabe, num potencial turístico e depois pensar num turismo comunitário. Eu sempre falo que estive no Amapá, quando tem as festas do Marabaixo, que é uma manifestação cultural negra do Amapá. Lá, nas festas, a gente toma o gengibirra, que é uma bebida feita com gengibre. Encontrei a mesma bebida em Oriximiná, no quilombo de Oriximiná, só que lá chama cachiri, mas é feita também com gengibre da mesma forma, só muda o nome. A gente, por exemplo, pensando em produção de cachiri ou de gengibirra, com selo quilombola, enfim. Hoje, por exemplo, está se vendendo muito aqui no Pará, cachaça com jambu. Todo mundo quer experimentar a cachaça com jambu. Trazendo isso, quem sabe isso não vira uma fonte de renda para a comunidade, além de divulgar a comunidade para fora, para o mundo. É um pouco nesse sentido. Porém, quando a gente fala de ancestralidade, a gente quer encontrar uma forma de fortalecer a identidade quilombola. Hoje, dentro do quilombo, tem muita gente que ainda tem dificuldade de se autoafirmar como quilombola ou como negro. Às vezes, só se autoafirma quando tem algum benefício. Então, a gente precisa ampliar esse debate dentro da comunidade, e estamos estudando uma forma de fazer isso.
InternetLab: Você falou um pouco da dificuldade de instalação desse projeto. O que você acha que deveria ser tomado para resolver essa dificuldade que você apontou?
Galiza: Tem uma coisa que é muito difícil, até para dar uma resposta com relação a isso. Estamos falando da questão geográfica da Amazônia. Eu tive a oportunidade de instalar internet na comunidade de Tambor, município de Novo Airão, no Amazonas. Eu saí de Belém via aérea, cheguei em Manaus. Eu tive mais ou menos um dia todo para chegar em Novo Airão e 33 horas no barco para chegar em Tambor. A gente não estava preparado para aquela viagem, então a gente levou pouca água, levou pouca comida no barco. A gente não tinha noção do quanto era distante, da dificuldade. A questão geográfica do nosso estado e da nossa região faz com que isso fique mais difícil, complique mais para chegar. Então, nesse ponto, eu não tenho uma solução. O projeto vive de recurso, de doação da filantropia. E com isso também, às vezes, a dificuldade talvez fosse a gente ter mais recurso para ter uma lancha mais confortável, mais rápida, quando precisasse ter um barco mais confortável, mais rápido.
Dar condição de chegar mais rápido, segurança para os técnicos, para a equipe técnica que está indo, condições para levar os equipamentos. A gente leva, por exemplo, para comunidades que nem a gente ficou 15 dias em um barco em Oriximiná. Todas as comunidades de Oriximiná, as comunidades quilombolas, não têm energia. Então, a gente leva um kit de energia solar. A gente leva quatro placas solares grandes para cada comunidade. A gente leva um boxe que pesa 100 quilos, que vai com bateria, inversor e tudo mais. É um material muito pesado e de qualidade. A gente leva uma bateria de lítio e o tempo de vida dela é, no mínimo, 20 anos. Não dá para voltar para trocar uma bateria. Então, por isso, a gente está levando equipamentos de muita boa qualidade. Porém, são equipamentos que são, além do volume, do peso, é mais difícil para transportar. Além da antena, dos roteadores, dos cabos, enfim. E, como eu disse, a gente está vivendo de doação da filantropia e aí não dá, muitas das vezes, o recurso não dá para ter essa qualidade, digamos, no transporte.
InternetLab: O Conexões Povos da Floresta tem algum tipo de diálogo ou alguma abertura com o Governo Federal, Estadual ou Municipal,? Alguma contribuição de recurso ou política?
Galiza: Bem, a gente vai fazer agora, dia 4, o encontro do projeto Conexão – vai ser em Alter do Chão, lá em Santarém. E a gente está convidando o representante do MIR, que é o Ministério da Igualdade Racial. A gente está convidando também a diretoria de Povos e Comunidades Tradicionais, também do Ministério dos Povos Indígenas. A gente está convidando vários setores que a gente acha que é interessante estar ali, que pode haver possibilidades de apoio. A gente está pensando que, como eu falei, os recursos que compram os equipamentos, que pagam a equipe técnica, que dão a condição para o projeto andar, vem da filantropia. E toda e qualquer internet, a gente tem uma taxa de consumo da internet. Então, quando a gente está comprando equipamento, a gente já compra com um ano pago do consumo. Então, instalou ali, a comunidade tem um ano para poder começar a dar contribuição para o projeto. A gente está colocando lá para os Yanomamis, por exemplo
A gente sabe que a comunidade não tem condição de pagar. Então, o projeto vai ter que dar um jeito de bancar essa taxa de consumo. E outra, também como não é um projeto de governo, a gente quer ter um fundo de manutenção. Queimou a antena, vamos precisar trocar. Queimou o roteador, vamos precisar trocar, etc. Então, criar um fundo de manutenção também para o projeto. Por isso, a gente quer tentar ver se o governo federal, por exemplo, assume a taxa de consumo.
Se o governo federal assumisse a taxa de consumo, a gente já ia ter uma vaquinha só para criar o fundo de manutenção. O que seria mais barato, digamos assim, um custo menor para a comunidade. Isso a gente está pensando, isso a gente está dialogando, dialogando com diversos setores dentro do governo. Mas até agora, só um setor do Ministério da Saúde já está parceiro nosso, que é no setor de telemedicina. A gente está buscando, sim, essas parcerias, não só do governo federal, mas de qualquer outra organização que possa contribuir.
InternetLab: Você poderia explicar um pouco mais sobre esse projeto de telemedicina?
Galiza: Então, os indígenas optaram por trabalhar com a Telemedicina somente com a rede SUS. Os indígenas têm mais acesso, digamos assim, têm vários sistemas de acesso ao SUS, que é diferente das comunidades quilombolas. A CONAQ optou em trabalhar de forma – eu chamo de forma híbrida, não sei se está correto. Ou seja, os quilombolas podem ser atendidos pela rede SUS ou por uma organização não governamental que já atua na Telemedicina. Como eu citei, o Programa Saúde e Alegria. O Projeto Saúde e Alegria, eles, por exemplo, contratam médicos, colocam dentro de uma sala, na frente do computador, somente esperando a sua chamada. E aí, eles passam o dia para atender vocês, consultando as pessoas através da Telemedicina.
Então, digamos que se eu tento pelo SUS e não sou atendido, eu tenho uma segunda opção, de ser atendido por uma organização não governamental. Eu digo isso porque os quilombolas são muito mais difíceis. Às vezes, na grande maioria, a relação comunidade e gestão pública municipal não é fácil, ela é muito difícil, muito complicada. Mas o projeto também está conversando com todos os secretários municipais, alguns recepcionam muito bem, outros não, para exatamente criar essa linha de atendimento.
Para a instalação das antenas a CONAQ está trabalhando com dois técnicos. A gente vai contratar mais um agora, que a gente treinou. A COIAB tem dois, o CNS tem dois, também vamos tentar ampliar. Mas a equipe do projeto todo é muito grande, porque a gente tem uma equipe técnica lá em São Paulo. Os equipamentos chegam para São Paulo, então nós temos uma equipe técnica em São Paulo que vai testar tudo, que vai configurar tudo, os equipamentos, padronizar as embalagens, as caixas, padronizar. E aí a gente vai, depois disso, vai ser enviado para os estados onde tem as demandas.
O projeto envolve muitas pessoas. A gente criou o Instituto, a gente criou o projeto Conexão Povos da Floresta, depois a gente teve que criar o Instituto Conexão Povos da Floresta para fazer a gestão, a governança dos recursos. Então, o Instituto foi criado, eu sou um dos conselheiros do Instituto para poder fazer a gestão, a governança dos recursos e do projeto como um todo.
InternetLab: Uma das questões da pesquisa é pensar um pouco sobre a percepção da chegada da internet nas comunidades. Você falou que em 2021 foi quando vocês viram que a conectividade era uma grande demanda. Passado esses anos, você acha que mudou alguma coisa dentro da comunidade com relação à internet? O que as comunidades acham da internet depois que ela chegou?
Galiza: Bem, acho que mudou, porque as comunidades realmente passam a entender o quanto isso era – aliás, elas passam a ter certeza de o quanto isso era importante para a vida delas, para a vida das pessoas na comunidade. Nós encontramos, por exemplo, pessoas, estudantes universitários, que não tinham onde fazer uma pesquisa, não tinham onde fazer um trabalho, porque não tinha internet. Então, esse pessoal vibrou muito. Inclusive, quando a gente vai para a comunidade, além da internet, a gente leva o notebook, e um celular. O celular fica com o facilitador, porque a gente baixa os aplicativos para que a pessoa possa fazer a gestão da internet. A gente não trabalha simplesmente com senha, a gente trabalha com login, para a comunidade ter o controle do acesso. Então, a gente treina a pessoa, o facilitador, a facilitadora, como cadastrar as pessoas na rede. Uma vez a pessoa cadastrada na rede, em qualquer comunidade que tenha Povos da Floresta, ela pode acessar. A gente ensina também ela a criar outros perfis.
Por exemplo, às vezes, tem as festas da comunidade, o pessoal vendendo ali as comidas, as bebidas, e muitas das vezes a pessoa: ah, eu só tenho dinheiro no PIX. Então, a gente cria o perfil evento, cadastra a pessoa, e a pessoa pode fazer seu pagamento no PIX. E aí, depois, quando a pessoa for embora, se ela não for quilombola, tem que excluir ela da rede, né? Porque senão ela vai ter acesso a qualquer quilombola, em qualquer lugar que a gente tenha o projeto. Então, a gente faz esse treinamento.
Acho que na maioria das comunidades, principalmente naquelas mais isoladas, o pessoal fez festa, né? Teve dança de carimbó para festejar a chegada. Fez muita coisa boa, né? Muita coisa legal. Nas comunidades que já têm algum tipo de internet, por mais ruim que seja – porque a gente tem chegado em comunidades que têm resquício de fibra óptica, mas funciona de manhã, tarde não tem. Quando vem uma chuva lá em São Paulo, aqui já não funciona mais. Mas, mesmo assim, essas pessoas já não festejam, porque elas já têm algum tipo de contato, né? Já não têm grande receptividade. Acho que o desafio que a gente está tendo é que a gente está levando uma internet que é potente, porém ela é coletiva e o nosso roteador só joga 100 metros. Então, para acessar, tem que chegar perto, mas as pessoas querem internet nas suas casas, né? Porque a gente não quer individualizar isso dentro da comunidade. Quer deixar no coletivo. Estamos estudando outro equipamento que possa ampliar mais o sinal dentro da comunidade sem perder essa questão da coletividade.
Só para dizer um fato que eu lembrei. Lá em Santarém tem uma comunidade chamada Patos do Ituqui. Essa comunidade, a gente já tinha colocado internet, ela não tinha acesso ainda ao aplicativo de monitoramento territorial. E o madeireiro entrou na comunidade destruindo toda a comunidade, derrubando tudo. A nossa facilitadora fez a denúncia no grupo dos facilitadores. Todos os facilitadores ficam em um grupo onde eles podem trocar experiências. Os facilitadores, os técnicos, muita gente de coordenação está no grupo. E ela, então, fez a denúncia da invasão no grupo dos facilitadores. Então, a gente conseguiu mandar para lá rapidamente a Polícia Ambiental de Santarém. Não conseguiu prender ninguém, eles se evadiram, mas parou o desmatamento, e a gente está monitorando para que eles não voltem mais. Assim como a comunidade também conseguiu apoio para fazer a derrubada de uma cerca que impedia a comunidade de acessar uma área de base antes de acessá-la. Então, hoje o território está livre. Assim as pessoas podem acessar as áreas onde elas eram impedidas de acessar.
InternetLab: Antes de finalizar, você tem mais alguma coisa que você gostaria de dizer ou reforçar?
Galiza: Acho que só no campo da importância da internet na Amazônia. Acho que uma das coisas que venho batendo muito é a invisibilidade da Amazônia negra. Você vê que os dados indicam que a maioria da população na Amazônia é negra. Quando os representantes políticos, governadores e tal, quando eles aparecem falando da COP (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), eles aparecem trazendo sempre os indígenas com eles ao seu lado. A gente fica muito feliz, porque os indígenas já conseguiram essa visibilidade. Até o presidente Lula, com o Macron, tiveram aqui em Belém. Os indígenas estavam com eles, as populações indígenas estavam com eles.
Eu acho importante essa visibilidade, porque a gente preserva a floresta tanto quanto os povos indígenas. Eu sempre falo, assim: se você sobrevoar a Amazônia, onde tiver floresta, se você descer, você vai encontrar quilombolas e indígenas extrativistas. As comunidades tradicionais. Onde tiver só campo, não é nós que estamos lá. Nem é o nosso jeito de viver. Então, dar essa visibilidade, principalmente nesse momento de COP 30, era o que muita gente queria. E a gente espera que com a chegada da internet nas comunidades, o mundo comece a entender – as pessoas possam usar esse ponto de conectividade para mostrar a sua comunidade para o mundo.Mas hoje, quem vem de fora, pensa que na Amazônia só tem índio e jacaré. Nós negros e quilombolas estamos lá e somos a grande maioria da população da Amazônia. É isso que eu queria reforçar. Inclusive, a CONAQ está pensando em criar o aquilombar amazônico dentro da COP. Não sei se vamos conseguir organizar um espaço de debate sobre os quilombolas, sobre a população negra na Amazônia. Mas a gente está pensando isso, estruturando isso. No mais, é agradecer. Muito obrigado por tudo.