“Como não tinha internet, o pessoal não tinha como denunciar. Hoje, não. Eles estão conectados.”

João Nascimento Salles, conhecido também como João Quilombola, é integrante da CONAQ, liderança da comunidade quilombola Lagoa dos Índios/AP, e nosso quarto e último entrevistado no Especial Redes da Floresta. Dando enfoque para a importância da chegada da internet nos territórios do Amapá, João aponta a relevância das parcerias locais diante da insuficiência da atuação estatal na elaboração de políticas públicas de conectividade.

Notícias Desigualdades e Identidades 10.07.2025 por Stephanie Lima, Catharina Vilela e Fernanda Casagrande de Miranda Caribé

Em entrevista ao InternetLab, João aborda a realidade de sua comunidade e de outros territórios quilombolas do Amapá, marcados pela investida de empresários, políticos e representantes do agronegócio, que se aproveitam da fragilidade da presença estatal na região para avançar na tentativa de ocupação desses territórios. Segundo ele, a internet surge como uma ferramenta estratégica não apenas para fortalecer a luta pela regularização fundiária, mas também para ampliar o acesso a direitos fundamentais, como saúde, educação e informação.

Diante das críticas ao uso da tecnologia da Starlink em territórios quilombolas, João enxerga a chegada da empresa de forma construtiva: “Nós entendemos que a internet da Starlink que chega aqui para nós é muito importante, porque essa conexão se torna tudo nas comunidades que não têm nem energia ou sinal de telefone.”

Na ausência de políticas públicas de conectividade efetivas por parte do Estado, as comunidades têm recorrido à articulação com organizações sociais e parceiros locais como caminho viável para garantir o acesso à internet. Segundo João:  “Pra resolver essa questão, o governo tinha que colocar energia de qualidade direto nas comunidades. Mas como isso não vai acontecer tão cedo, temos que contar com os nossos próprios parceiros para contornar essa situação.”

CONFIRA NA ENTREVISTA:

InternetLab: Gostaria que você se apresentasse e contasse um pouco sobre a sua trajetória de vida, de luta, e do trabalho que você faz. 

João Quilombola: Eu me chamo João Nascimento Salles, tenho 52 anos. Sou quilombola da comunidade Lagoa dos Índios, que é a mais próxima aqui da nossa capital, Macapá. Eu estou no movimento desde 2000, período em que recebi o convite da CONAQ Amapá para fazer parte da diretoria – continuo lá até hoje. A minha trajetória de trabalho começou, principalmente, devido à necessidade por discussões relacionadas à questão da terra, e até hoje carrego comigo essa luta pela regularização fundiária. A gente também tem o nosso trabalho social dentro da coordenação e elaboração de projetos que a CONAQ faz para as comunidades, que persiste até hoje. 

A minha trajetória é bem comprida, bem árdua, de muita briga pelos nossos direitos. Estamos sempre brigando com o poder público pelos nossos direitos, porque não fazem nada por nós – na verdade, tentam atrasar tudo quanto é processo que fazemos para melhorar a situação do nosso pessoal. A nossa briga maior é com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), porque o INCRA é só indicação política – por isso não andam nossos processos lá. Isso faz com que nossa comunidade e nossa terra seja tomada pelos políticos, pelos empresários e pelo pessoal do agronegócio. O agronegócio agora está com força aqui no estado e, quando a terra é boa, eles passam até com um trator por cima das casas e jogam tudo abaixo. E a Justiça está do lado deles – do nosso lado, mesmo, a gente só tem o Ministério Público e a Polícia Federal. É o que ainda tem pela gente. Apoio de outras coisas, a gente não tem. 

InternetLab: Hoje, você considera que o acesso à internet é importante? Quais são as maiores dificuldades que você acha que existem ao falarmos de luta pelo acesso à internet nas comunidades quilombolas do Amapá e do Macapá? Além disso, como o senhor percebe que a comunidade quilombola utiliza a internet? Para quais fins?

João Quilombola: O acesso à internet é importante. Tem comunidades e municípios que são mais distantes aqui da capital, alguns nem sinal de telefone, acesso à internet ou energia tem. Ficam bem no centro da mata, bem longe mesmo. Nós entendemos que a internet da Starlink que chega aqui para nós é muito importante, porque essa conexão se torna tudo nas comunidades que não têm nem energia ou sinal de telefone. Com ela, o pessoal fica conectado, se torna mais presente e fica mais próximo. 

A internet é importante para os que vivem muito mais afastados, especialmente questões de saúde, de educação, de informação, mas também é importante para a gente aqui. Porque, sem a internet, nós tínhamos um custo muito grande para conseguir chegar nessas comunidades remotas e, como a gente não tem apoio de governo, a logística antes era pesada e complicada demais para ficarmos nos deslocando para qualquer trabalho em uma comunidade distante. E agora, com essa conexão, a gente já resolve tudo online e consegue conversar com quem precisar. Não é preciso se deslocar para lá e para cá, somente quando a coisa demanda um trabalho mais especial.

Dificuldades… A gente não tem muita dificuldade com ela. Só está sendo dificultoso porque, até agora, veio uma quantidade contada de placas de energia, um valor mínimo para levar a internet para as comunidades. A gente tem, no estado, 47 comunidades conectadas, mas existem mais de 100 – e isso eu falo só de comunidades quilombolas. Nós temos aqui comunidades tradicionais e ribeirinhas que ainda não estão inseridas. Aqui tem os povos indígenas, que estão trabalhando com o Conexão Povos da Floresta – tivemos uma conversa com o Galiza em que discutimos planos para expandir o projeto para os ribeirinhos. A gente já até mandou uma relação, e agora estamos aguardando. É essa a principal dificuldade que temos: a espera. A internet chegou bem no comecinho do ano, e estamos aguardando chegar em outras comunidades. Espero que não demore muito, porque as pessoas estão pedindo. A gente já fez uma relação de demanda e já mandou tudo direitinho para eles, e o pessoal daqui está cobrando – estão precisando, mesmo, a gente vê que a necessidade é grande. Essa é a nossa maior dificuldade, a espera para conectar o resto do pessoal.

Nós temos um projeto aqui no estado de polos da universidade. A gente sempre teve dificuldade para entrar na UNIFAP, que é a Universidade Federal do Amapá – nem com as cotas conseguimos acessar. Então, a CONAQ e as comunidades, em uma ação conjunta, tiveram a seguinte ideia: já que a gente não entra na universidade, vamos tentar trazer a universidade para a comunidade. A gente fez um projeto e mostramos para o reitor da universidade – ele gostou da ideia, e a gente conseguiu colocar seis polos da universidade em seis comunidades. Tivemos que correr atrás de recursos para que o projeto funcionasse, mas nós conseguimos. O projeto está funcionando já há dois anos e meio e agora está indo para o terceiro – para que no ano que vem, se Deus quiser, essa primeira turma vai estar sendo formada. São 300 alunos, 50 em cada polo, e a internet veio ajudar demais esse povo – porque na comunidade o professor ia dar aula, mas não tinha internet, o que tornava a realização de pesquisas por parte dos alunos praticamente impossível. Então isso foi muito bom para eles. Quando a internet chegou, a gente priorizou esses seis polos para colocarmos logo a conexão lá. Eles usam essa internet para fazer pesquisa e para fazer os trabalhos deles, de lá da UNIFAP. 

Outro ponto positivo que a internet trouxe é a melhoria da segurança das outras comunidades distantes. Aqui, nós temos muita área de preservação com recursos naturais, e, sem a internet, a exploração desses territórios era muito mais fácil para os invasores e garimpeiros. Antes o pessoal entrava, invadia, desmatava, explorava, fazia caça, pesca – tudo que era proibido eles faziam. Como não tinha internet, o pessoal não tinha como se comunicar ou denunciar. Hoje, não, eles estão lá, conectados, e quando acontece alguma coisa desse tipo eles têm como denunciar e entrar em contato com a polícia, com o Ministério Público, ou conosco, da CONAQ.

A internet inibiu muito esse pessoal. Nós, inclusive, temos uma história de uma comunidade, aqui, em que um político se aproveitou dessa situação de desconectividade. Ele comprou um terreno de uns duzentos metros de frente por quinhentos de fundo e cercou a comunidade toda. Ele foi no INCRA, conseguiu um título definitivo, foi lá com a Justiça, meteu o trator e tirou a comunidade de lá. A comunidade não pôde reagir. Apontaram armas para o pessoal, e eles não tinham como chegar na cidade, que era muito longe. Até eles conseguirem sair de lá e procurarem a CONAQ para fazer uma denúncia, quase um mês já tinha se passado. A gente provou que a comunidade estava há mais de 100 anos lá, que ela estava regularizada, que aquela gente tinha direito pela terra. Se tivesse internet naquele tempo, talvez tudo isso não teria acontecido. Talvez, na hora que eles tivessem começado com esse processo de invasão, a comunidade poderia ter entrado em contato com nós, do CONAQ. Mas não conseguiram, justamente por falta de internet. 

E, por fim, acredito que a internet ajuda muito em questões de atendimento médico – principalmente em casos de pessoas que moram no interior e que não têm transporte ou meios de locomoção para se deslocarem para outros lugares para conseguir atendimento. Às vezes, a pessoa tinha que pegar canoa ou bicicleta para chegar à um lugar com auxílio médico, ou então passava dois dias para chegar num lugar que tivesse internet só para pedir ajuda. Hoje, não. Nós realizamos instalações em comunidades distantes que sofriam desse problema, e isso se resolveu. Agora, caso haja alguma questão médica, eles podem entrar em contato com a equipe de medicina e pedir ajuda – e o auxílio chega de forma rápida. Então, no geral, a conectividade e a chegada da internet facilitaram muito a educação, a saúde e a preservação de áreas ambientais – especialmente para comunidades mais remotas.

InternetLab: Você apresentou, durante a sua colocação, a existência de alguns parceiros frente aos projetos de conectividade. Quais parceiros quilombolas auxiliam nessa mobilização? Além disso, você mencionou que, quando é preciso, as comunidades podem contar somente com a Polícia Federal e o Ministério Público. Como essa relação foi construída? Por fim, quando comentava sobre parceiros, você mencionou a Starlink. O senhor já ouviu alguma crítica à essa empresa, principalmente devido ao fato dela ser de fora do Brasil? Isso gera alguma preocupação?

João Quilombola: Os parceiros que temos são poucos, e são parceiros mais de fora do estado do que de dentro. No Pará, por exemplo, nós temos a Malungu, que é parceria nossa. Temos a Nega Anastácia e a CONAQ Nacional, parceiras nossas também. Nós, da CONAQ Amapá, temos somente parcerias locais com comunidades quilombolas mesmo. Podemos contar com alguns advogados que são quilombolas, que, graças a Deus, conseguiram se formar e que ajudam a gente nessa empreitada. E agora temos a Starlink, que nos provém com a placa solar. Nós temos também parcerias médicas para as comunidades, mas nada além disso, são essas as parcerias que temos. Parcerias com o poder público nós não temos. Quando a gente precisa, só temos aqui a Polícia Federal e o Ministério Público. É isso que a gente tem pela gente, outros a gente não tem, não.

A relação que construímos com o Ministério Público se deu principalmente por meio de um procurador que ficava aqui – acredito que ele seja do Rio de Janeiro, mas ele é de uma comunidade quilombola de lá –, chamado doutor Cardoso. Acho que ele saiu daqui para fazer parte do quadro do Ministério do governo da Dilma, na época. Ele passou alguns anos aqui, e, nesse meio tempo, viu as dificuldades que passávamos e as omissões do poder público e da Justiça diante delas. A gente trabalhava com o programa Fome Zero, na época, aqui em Macapá. Todas as vezes que a gente ia fazer distribuição das cestas básicas desse projeto, a gente sempre convidava esse procurador. Ele gostava de andar com a gente, passar pelas comunidades que ele começou a conhecer, gostava de andar para comer o peixinho dele por lá. Então, a gente começou a construir essa relação com o Ministério Público através dele – e quando ele saiu desse cargo, ele recomendou para o outro que ficou no lugar dele que ajudasse as comunidades sempre que possível, pois a gente só tinha o Ministério Público e a Justiça Federal para contar.

Conforme fomos criando essa relação, conhecemos outras pessoas lá de dentro. Conhecemos a Núbia, por exemplo, que é uma pessoa muito ativa. Ela que faz a nossa parte do trabalho político daqui, dentro da coordenação estadual. Ela construiu uma relação com alguns políticos para que eles ajudem a gente – e digo ‘ajudar’ com ressalvas,  porque a partir do momento em que o bolso deles sai prejudicado, eles pulam fora. Mas, de qualquer maneira, ela construiu essa ponte. Ela é uma pessoa muito política, a gente diz que ela é uma pessoa muito inteligente, que ela já tentou se afastar do movimento, mas o movimento não sai dela. É ela que faz toda a parte burocrática, que nos auxilia na hora de fazer e redigir documentos – e, no momento em que precisamos nos envolver em uma briga com a Justiça, a gente vai para cima. A gente vai para ganhar, e graças a Deus a gente tem tido sucesso nisso, porque ela, nessa parte, é bem articulada, e nos auxilia muito.

Em relação à Starlink, não, a gente não tem reclamação desse tipo, aqui, sobre ela ser estrangeira. A única coisa que acontece, de vez em quando, é que a internet desconecta quando dá uma chuva bem grande aqui, com muito relâmpago e essas coisas assim. Mas aí a gente já sabe como é que faz para reconectar – tiramos da tomada, colocamos de novo para ela reiniciar e fica perfeito. Se acontecer alguma coisa mais séria, a gente vai lá para verificar – como eu fiz o curso que eles oferecem para técnico de instalação, eu consigo ajudar bastante aqui nessa parte de funcionamento da internet.

Então, acredito que não temos aqui esse ponto negativo – talvez a gente tenha, mais na frente, mas agora não. Caso aconteça alguma coisa, acho que seria mais por conta dos empresários e do pessoal do agronegócio, porque eles ainda não sabem que a Starlink está funcionando nessas comunidades. Eu acredito que, quando o sinal expandir ainda mais, eles vão ficar sabendo. Aí, talvez eles venham fazer alguma coisa ruim, negativa. Mas a gente já está esperando eles com isso.

InternetLab: Você mencionou anteriormente que ainda há uma dificuldade de conexão na internet na Amazônia – uma certa fragilidade na própria conexão, que se perde muito facilmente com fatores externos como chuva e mau tempo. O que você acha que deveria ser feito para mitigar esse cenário? Você acredita que o governo deveria fazer mais pela Amazônia e pela sua conectividade?

João Quilombola: Eu diria que o governo precisa colocar mais torres de energia. Mais distribuidores desse serviço, na Amazônia, para se ter uma internet móvel de maior qualidade, com dados móveis. Mas eu acredito que isso está meio longe ainda de acontecer. Não enxergamos que a conexão, em si, é frágil – se existe alguma fragilidade, ela ocorre por conta da queda da energia, e não pelo sinal, de fato. Pra resolver essa questão, o governo tinha que colocar energia de qualidade direto nas comunidades. Mas como isso não vai acontecer tão cedo, temos que contar com os nossos próprios parceiros para contornar essa situação. Havendo placas de energia solar em todas as comunidades, eu acredito que o problema seria resolvido – porque, das que temos aqui, nenhuma tem placa solar, só de fiação. No momento da chuva, os galhos caem em cima dos fios de energia, que se rompem. Às vezes, só de encostar um galho na fiação a energia desaparece. Se o fio romper, já houveram casos em que a comunidade em questão passou três, quatro dias sem energia. Até mês sem energia já aconteceu, porque o pessoal da Equatorial não vinha resolver a situação e a comunidade teve que trabalhar para achar uma solução. A Equatorial só aparece para deixar a fatura – resolver o problema, eles não resolvem. Se tivesse, então, placa solar para todas as comunidades, nós não teríamos essa questão de perda de sinal por conta dos fios. 

Outra coisa que eu vejo – mas que já estão trabalhando nisso – é na questão de ampliar o sinal da conexão e a internet. Existem lugares em que o sinal se estende somente em 30 metros – outros um pouco mais, em uns 50 ou 100, mas que ainda assim alcançam uma distância muito curta. A Starlink têm que fazer um roteador que chegue mais longe, que dê pelo menos uns 300 metros. Uns 200 metros já ajudaria muito, porque o alcance da internet, hoje, é muito curto. Esse é um dos pontos que as comunidades reclamam. A instalação é sempre feita em centros comunitários de preferência da comunidade, em escolas, postos médicos, igrejas, porque, dessa maneira, todos podem ir até esses locais e acessar facilmente à internet. Aí o pessoal se junta, e todo mundo fica por lá. A questão é que isso torna o acesso muito restrito –  tinha que ser uma conexão que chegasse mais longe. Essa é a principal reclamação. O pessoal da comunidade costuma dizer: “poxa, eu queria poder acessar a internet de casa”, porque se uma pessoa mora a 50 metros de onde a conexão está instalada, ela vai ter que ir até o centro comunitário para acessar. Essa é a principal reclamação que eles fazem – outra não tem.

InternetLab: Estamos encerrando a entrevista. Você gostaria de reforçar ou comentar mais algum ponto?

João Quilombola: O que eu peço é que a gente possa fazer mais parcerias. Pedir, para vocês que estão mais próximos, não esquecerem da gente que está para cá, para podermos nos ajudar. Quero agradecer muito pela oportunidade de mostrar para vocês um pouquinho dos nossos territórios e de como as coisas funcionam por aqui. 

O que a gente mais quer no nosso estado é que o governo faça a regularização fundiária para garantir a terra do nosso pessoal. Porque, como nós não temos um documento que oficialize as terras como nossas, nós não podemos fazer muito, nem mesmo um empréstimo. Isso abre uma brecha para que pessoas que não são das comunidades ocupem as nossas terras. A terra da União que tinha aqui, eles já ocuparam tudo, e agora estão entrando nas terras quilombolas. 

Tudo o que queríamos era que o governo regularizasse nossas terras, para que tivéssemos uma garantia de uma vida em paz e com dignidade. A gente trabalha nas comunidades só com mandioca, com coisas pequenas, e queríamos poder trabalhar com coisas maiores, para ajudar o nosso estado. Mas a gente não tem o apoio do governo, e só o governo consegue fazer essas coisas – por isso está cada vez mais fácil essas pessoas tomarem nossas terras. 

compartilhe