“Se nossos direitos fossem assegurados, todos os problemas de acesso à internet, à conectividade e do bem-viver das comunidades quilombolas seriam sanados”.

Janilson Soares Rodrigues, professor, agricultor e liderança da comunidade quilombola Kalunga do Mimoso/TO, é nosso terceiro entrevistado no Especial Redes da Floresta. Na entrevista, o líder evidencia o impacto da chegada da internet nos territórios do Tocantins e aponta os principais empecilhos à presença plena da conectividade no dia-a-dia das comunidades.

Notícias Desigualdades e Identidades 03.07.2025 por Stephanie Lima e Fernanda Casagrande de Miranda Caribé

Janilson Soares Rodrigues, professor, agricultor e liderança da comunidade quilombola Kalunga do Mimoso/TO, é nosso terceiro entrevistado no Especial Redes da Floresta. Na entrevista, o líder evidencia o impacto da chegada da internet nos territórios do Tocantins e aponta os principais empecilhos à presença plena da conectividade no dia-a-dia das comunidades.

Em entrevista ao InternetLab, Janilson rememora os primeiros momentos da chegada da conectividade tanto em sua comunidade como em outros territórios quilombolas do Tocantins, e traça paralelos e comparações entre o cenário prévio e póstumo à chegada da internet via satélite. Ele ressalta que, para que a inserção da internet nas comunidades atinja seu potencial de conectividade máximo, ela deve ser precedida por capacitações que alertem sobre os possíveis perigos e riscos inerentes ao acesso à rede.

Diante dos questionamentos trazidos à tona devido à utilização das antenas da Starlink, Janilson entende que o impacto da tecnologia é positivo: “Quando a gente vê chegando um projeto desses, com as antenas da Starlink, nós vemos chegar também uma conectividade. Por meio da fala dos habitantes dessas comunidades, entendemos que após a chegada da Starlink nesses territórios as coisas mudaram – e mudaram para melhor.”

Além de auxiliar em questões de políticas públicas, Janilson compreende a internet como instrumento significativo para a permanência dos saberes quilombolas. De acordo com ele, com a chegada da conectividade, nós podemos compartilhar e divulgar os ensinamentos ancestrais tanto entre os nossos mais jovens quanto com pessoas de fora da nossa comunidade”.

CONFIRA NA ENTREVISTA:

InternetLab: Você poderia nos contar um pouco da sua história? Quais são suas perspectivas em relação aos desafios e oportunidades sobre a conectividade da internet na sua comunidade?

Janilson: Eu sou da comunidade Kalunga do Mimoso do Tocantins, no município de Arraias, que fica localizada a 120km da cidade mais próxima. É uma comunidade que recebeu a certificação em 2005, muito extensa em território – mas somente uma minoria dessa terra está em poder efetivo dos quilombolas. Eu sou uma jovem liderança, graduado em pedagogia pela UFT, a Universidade Federal do Tocantins. Atuo como professor já tem quase cinco anos, e sou agricultor também. Eu sempre incentivo os jovens à saírem daqui, estudarem, adquirirem e produzirem conhecimento para depois voltarem para a comunidade, trazendo tudo aquilo que eles acumularam de experiência de volta para nós. 

A comunicação na nossa comunidade ficou mais fácil agora, com a chegada da internet via satélite, porque antes o único meio de troca era via rádio. Ou seja, alguém da cidade fazia uma ligação pra alguma rádio, seja FM ou AM – que no nosso caso seria AM, porque a FM não tem sinal que atenda essa distância –, e mandava um recado, como por exemplo: “por aqui está tudo bem”, ou “estamos precisando de tal coisa”. A chegada da internet via satélite facilitou a comunicação, e algumas famílias já dispõem desse meio em suas residências de forma própria. 

A nossa comunidade dispõe de uma associação ativa, com CNPJ, porém é um pouco desestruturada em relação a fundos. Por mais que ela tenha um CNPJ ativo, ela não arrecada fundos – ainda. Está em processo para conseguir arrecadar fundos. Quando a gente vê uma comunidade muito grande, extensa, tanto em território como em famílias – nós temos aproximadamente 370 famílias –, a gestão dessa comunidade se torna complicada. Tem uma presença forte de um pensamento individualista, que acaba atrapalhando uma gestão bacana. Temos esse problema, mas estamos tentando reverter essa situação. Para unir essas pessoas, para pensar mais no coletivo, para conseguirmos organizar fundos. 

Como nós estávamos no piloto do Conexão Povos da Floresta, nós fomos um dos primeiros a receber tanto o projeto em si quanto os benefícios que ele traz. Com o Conexão, a antena da Starlink fica instalada na sede da associação, que, por sua vez, fica numa região central na comunidade, e oferece um sinal de internet coletivo para os moradores. De antemão, nós recebemos o kit da internet e tudo mais. Como eu sou o facilitador, organizei uma reunião e expliquei para a comunidade o benefício que era receber uma internet de qualidade. Ressaltei que nós moramos e residimos a 120 km da cidade mais próxima, com estradas de chão que em alguns momentos se tornam praticamente intransitáveis – já chegamos a ponto de ficar 3, 4 dias sem poder se locomover na estrada, esperando por conserto –, e que a internet facilitaria muitas coisas para o nosso bem-viver. 

Antes, quando a gente precisava, por exemplo, assinar algum documento, a gente tinha que ir no cartório autenticar – e a maioria das famílias não dispõe de um veículo para se deslocar 120km somente para assinar um documento. Nós tínhamos um ônibus que fazia um trajeto duas vezes por semana entre a cidade e a comunidade, mas os donos resolveram diminuir para uma vez por mês, porque não estavam dando conta da manutenção. O prefeito faz a manutenção em algumas épocas específicas, porém não é o suficiente. Então, como algumas famílias não dispõem de veículo, se deslocar de lá da comunidade para a cidade, para ir no cartório, para autenticar algum documento, era muito difícil. Com a chegada da internet, tudo isso já se faz via GOV, que é o site do governo, facilitando muito a questão da logística e do transporte. Se alguém não tiver internet em casa, essa pessoa vai até a sede da associação para obter sinal – tem gente o tempo todo por ali. Então a pessoa chega, se conecta e faz essa assinatura digital pelo GOV, o que já facilita. 

Não só a assinatura de documentos como muitas outras coisas tornaram-se mais fáceis com a conectividade da comunidade. Se alguém precisa registrar um boletim de ocorrência ou fazer uma denúncia anônima, por exemplo, você já pode fazer também pela internet. Você vai lá, acessa, entra no site da polícia, registra o seu boletim de ocorrência, faz sua denúncia anônima. Auxilia, também, na comunicação das pessoas da própria comunidade – por ser uma comunidade extensa em terra, a internet se torna um dos meios de comunicação entre as famílias do próprio território. Então, a conexão facilita o contato tanto entre as famílias do próprio território como também com os familiares que residem nas cidades, em outros estados. Se alguém precisa pedir por socorro médico, por exemplo, nós temos o GP da Telemedicina. Embora nós nunca tenhamos utilizado – até porque eu nunca recebi formação para isso –, eu sei que já existem comunidades que utilizam dessa ferramenta, e é de grande valia e importância essa telecomunicação. Outro benefício de quando esse projeto chega na comunidade é que ele facilita a divulgação de um produto para a venda. Você pode expor, divulgar ele online. Seja um animal para vender, seja uma produção – uma hortaliça, algo do tipo –, ajuda também nessa questão de divulgação do seu produto, tanto dentro da comunidade quanto fora. Às vezes você vende para um vizinho ou vende pra uma pessoa na cidade, que encontrou seu produto em um post na internet e quer encomendar qualquer que ele seja. Isso tudo facilita e contribui para a vida das pessoas que residem no quilombo.

Ao contrário do que alguns podem pensar, eu acredito que a internet não limita nem exclui as pessoas velhas da comunidade, que muitas vezes são analfabetas. A maioria possui telefone celular e consegue acessar sites e redes sociais, como o WhatsApp, e conversar por exemplo, por meio de áudio – eu falo isso porque o meu pai é analfabeto e utiliza o telefone como se fosse alguém que já conhecia a ferramenta. Então, tanto a internet quanto o projeto Conexões como um todo fazem com que essas pessoas tenham essa inclusão digital em suas vidas. 

Então, no geral, eu avalio a chegada da conectividade na comunidade como um ponto positivo. A gente ainda está em fase de desenvolvimento, e creio eu que várias coisas, futuramente, serão ampliadas – o projeto tem o objetivo tanto de ampliar o sinal na comunidade quanto de ampliar o sinal dos roteadores. Isso é algo que vai beneficiar ainda mais as pessoas na comunidade, que eu enxergo como algo bom.

InternetLab: Você comentou que, antes da chegada do satélite da Starlink, o acesso à rádio era bem difícil. Como você acha que a chegada da internet contribuiu para o bem-viver da comunidade em diferentes dimensões? Além do Conexão Povos da Floresta, existe algum outro projeto de internet que auxilie a sua comunidade ou outras comunidades do Tocantins? 

Janilson: Como eu destaquei, além dos benefícios de divulgação do produto, a internet contribui também no momento de pedido de socorro. A nossa comunidade, mesmo sendo uma comunidade extensa em território e com muitas famílias, não tem nenhum posto de saúde. Somente algumas vezes – por vezes nem mensalmente – nós recebemos visita de médico. Então, com a internet, quando alguém na comunidade se acidenta – seja com um animal peçonhento, uma queda de cavalo ou acidente veicular –, a gente consegue reduzir o tempo nessa questão do socorro. Porque nós conseguimos comunicação com a Secretaria de Saúde na cidade para deslocar um veículo mais rápido, para dar um socorro mais rápido, já que a maioria das pessoas na comunidade não possuem veículo. Então facilita na questão de fazer um pedido de socorro, como já aconteceu várias vezes, e ser atendido de maneira mais rápida. Esse tempo é crucial para salvar a vida de alguém, em caso de acidente. Isso é um outro ponto positivo que impacta muito na nossa vida, na vida das pessoas que estão no quilombo.

Existem mais de 27 comunidades quilombolas no estado de Tocantins. Na nossa, o Conexão Povos da Floresta utiliza as antenas da Starlink e fornece essa conexão comunitária na nossa sede para aqueles que ainda não tiverem a internet ou que quiserem obter esse sinal. A maioria das pessoas já possuem internet via satélite em suas residências. Por exemplo, eu tenho uma internet própria do ViaSat há muito tempo, mas eu vou mudar para a Starlink. Eu conheço outros quilombos que já possuem e que utilizam desse meio de conexão, que é a internet via satélite, para comunicação de seus familiares – tanto dentro do quilombo quanto também com as famílias que moram fora do quilombo. Quando nós falamos de território Kalunga, existe Kalunga do Tocantins e Kalunga do Goiás, e a divisão dos dois Kalungas se dá pelo Rio Paranã. Já tem um ano desde que a primeira antena foi instalada pelo projeto. Hoje, se eu não me engano, existem mais de 950 antenas montadas pelo Conexões Povos da Floresta, espalhadas pelo Brasil. A nossa foi a 23ª – fomos privilegiados. O projeto espera contemplar mais de 5 mil antenas instaladas pelo país. 

InternetLab: Continuando a falar sobre os benefícios para o bem-viver, queria te ouvir um pouco mais em relação à seara da educação. Como você observa que a chegada de uma internet de mais qualidade impactou a questão da educação? Além disso, quais são as maiores dificuldades que você enxerga hoje ao falarmos de conectar territórios e comunidades quilombolas? Sobre o Conexão e as parcerias que ele possui na região de vocês: existe algum tipo de relação com o governo estadual ou municipal?

Janilson: Tratando de século XXI, a inclusão digital na educação é de grande importância, porque permite o acesso à várias plataformas digitais que vão somar no ensino do aluno. Isso vale tanto para o ensino escolar como também para os ensinamentos dos nossos ancestrais – uma vez que, com a internet, nós podemos catalogar espécies que estão no nosso território, sejam elas de fauna ou de flora. Com a chegada da conectividade, então, nós podemos compartilhar e divulgar os ensinamentos ancestrais tanto entre os nossos mais jovens quanto com pessoas de fora da nossa comunidade. Hoje, por exemplo, existem vários influencers digitais nos quilombos e nas aldeias indígenas que também fazem o trabalho de divulgar os nossos ensinamentos com o resto do mundo. 

O projeto permite a formação do facilitador, para que ele repasse para a comunidade a questão da educação – e por educação nós queremos dizer, também, em inclusão digital e capacitação das próprias pessoas da comunidade. Com essa educação, inclusão digital e capacitação, nós conseguimos mostrar que a internet tem um lado bom e um lado ruim, além de mostrar que é necessário capacitar as pessoas para o uso sadio da internet, de forma que ela não venha oferecer risco e perigo tanto para quem usa como para os demais. Hoje, sabemos que existem vários meios que são utilizados para a aplicação de golpes – e a internet é mais uma ferramenta que permite que pessoas de má fé cheguem nas pessoas leigas, especialmente analfabetas, que podem desconhecer como utilizar as redes. Para mitigar isso, o projeto capacita os facilitadores – no caso, eu – que, por sua vez, repassam para a comunidade aquilo que foi aprendido nos cursos ministrados, informando sobre essas questões de golpes.

Agora, em relação às dificuldades. Como eu já visitei algumas comunidades que são bem mais isoladas que a nossa, eu costumo dizer que somos privilegiados, porque temos estradas que recebem manutenção. Às vezes a gente gasta 4 horas de viagem, mas nós pelo menos temos um meio para se locomover. A gente coloca um veículo, se locomove e chega depois de umas 4 horas de viagem. Mas nós sabemos que nesse Brasil nós temos comunidades que estão isoladas, que não tem um acesso fácil para se deslocar até a cidade ou para mesmo conhecer outros quilombos. Até porque, na história, os quilombos eram formados em locais afastados e isolados justamente para fugir dos fazendeiros e dos opressores – por isso existe essa imensa dificuldade para chegar nesses territórios. São lugares de difícil acesso. 

Nós temos direitos e sabemos que esses direitos nem sempre são concedidos, mas isso não nos impede de sempre buscarmos por eles. Temos uma parceria com a COEQTO, que é a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins. Nós temos a CONAQ, que é à nível nacional. Nós temos representantes dessas instituições parceiras que sempre oferecem apoio jurídico. Também temos contato com editais, para estarmos sempre informados, e estamos sempre envolvidos em alguns projetos para melhor desenvolver a comunidade. A gente faz parceria com prefeitos, com vereadores – tudo isso faz com que a gente some. Porque nós precisamos dessas parcerias. E as parcerias que somam fazem toda a diferença para o desenvolvimento do quilombo.

InternetLab: Nas nossas entrevistas, mapeamos a existência de uma preocupação por parte da sociedade civil com os impactos da Starlink no território amazônico. Como você enxerga essas questões? Quais pontos positivos e negativos você percebe no uso dessa tecnologia, especificamente na conectividade a região amazônica?

Janilson: Na minha visão, o impacto é positivo. Em Alter do Chão, no encontro presencial que tivemos do Conexão Povos da Floresta, eu visitei uma aldeia indígena em  que passamos mais de duas horas em um barco para chegar lá – ou seja, o único meio de locomoção dessas pessoas é por barco. Quando a gente vê chegando um projeto desses, com as antenas da Starlink, nós vemos chegar também uma conectividade. Por meio da fala dos habitantes dessas comunidades, entendemos que após a chegada da Starlink nesses territórios as coisas mudaram – e mudaram para melhor. Isso é gratificante.

Eu vejo, então, como um impacto positivo. Até porque, as antenas trazem formas de você, por exemplo, denunciar algo que está acontecendo algo no seu território como o garimpo ilegal, por exemplo. Você pode denunciar de onde está, não precisa estar especificamente no local em que a ocorrência aconteceu e ir lá averiguar diretamente. Você pode estar fazendo essa denúncia de forma anônima, também, isso aumenta muito a proteção das pessoas. Além disso, eu acredito que a internet não vai interferir nas questões culturais das comunidades. Ela pode até interferir nos jovens, mas, com uma educação correta que apresente os perigos e desafios da internet, nós podemos impedir com que ela impacte negativamente a cultura de um determinado quilombo ou aldeia indígena. Sabendo de tudo isso, eu diria que o impacto é positivo, sim.

InternetLab: Você falou da complexidade e das dificuldades de acesso à internet. O que você acha que precisa ser feito para sanar esses problemas e para que os quilombolas possam ter seus direitos garantidos? 

Janilson: Nós temos nossos direitos garantidos pela Constituição, mas eles não são colocados em prática somente com essa garantia. Se esses direitos fossem realmente assegurados, todos os problemas relacionados ao acesso à internet, à conectividade e ao bem-viver das comunidades quilombolas seriam sanados. Se asfaltassem, por exemplo, a estrada do nosso quilombo até a cidade, já melhoraria muito a questão de deslocamento. Facilitaria a venda da produção dos produtores da comunidade e automaticamente geraria renda para a família – e a família iria se estruturar de uma maneira melhor em todos os sentidos. Iria fortalecer a economia local e do município. 

Tudo isso seria facilitado. Nós estamos cobrando por isso – pelos nossos direitos –, e entendemos que é justamente por meio da nossa cobrança que, aos poucos, esses direitos vão chegando para a gente. Isso só vai mudar daqui pra frente, daqui a alguns anos, porque o poder não está em nossas mãos. Se fosse por nós, já tínhamos feito essas melhorias há muito tempo – estamos sempre atrás disso. Se os governantes titulassem as terras e dessem as terras para as pessoas que são, de fato, suas verdadeiras donas, isso geraria uma melhoria enorme. Mas é uma briga que está aí há muito tempo, e ouvimos muito pouco sobre alguma comunidade que recebeu a titulação de suas terras. Nossa comunidade possui 57.334 hectares. Dessa quantidade de hectares, nós temos só 7% da nossa terra titulada. Acho que é isso que queria dizer. Obrigado!

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